Cidade de Deus

L'Affare

E o sol bate na laje de novo
Mais um dia, tudo de novo
Aqui não se planeja sumário
Só se tenta chegar no fim do capítulo
Se liga no nosso currículo

Acordo, o galo cantando junto a sirene
Cheiro de café misturado com querosene
A viela de baixo teve uma noite longa
Mãe benze: Deus te guie, que a paz te responda
Saio pra batalha, de crachá e busão
Sem ouro no pescoço, só cansaço na mão
Desvio da lojinha e da barreira improvisada
Hoje é do pessoal de lá, amanhã da rapaziada

Conheço cada beco, cada muro pichado
Sei onde tá o olheiro, onde o carro é desmontado
Não faço parte, mas sei por necessidade
Sobrevivência aqui é matéria de faculdade
Os moleque de 14 com a peça na cintura
Olhando de cima a baixo, medindo a postura
Abaixo a cabeça, dou bom dia sem graça
Eles são os reis do morro, eu sou só quem passa

Não quero atuar em filme de herói ou vilão
Uma história real, baseada na exceção
Minha cara não vai pro asfalto, nem vira lenda
Sem nome no noticiário aparecendo na legenda
Não quero glória do crime, nem fama que ele traz
Só quero meu filho crescendo na móh santa paz
Figurante que sobrevive ou morre, voz que ninguém escuta
Sou a alma invisível no centro da disputa

Lembro do Tião, jogava bola comigo
Sonhava ser jogador, escapar do castigo
Pai dele perdeu emprego, a fome não se importa
O brilho do revólver pareceu uma nova porta
Vi ele de longe, o olhar estava frio
Soldado numa guerra que nunca existiu
Deixou a pipa de lado, pra pegar no fuzil
Mais estatísticas pra conta do Brasil

Nos cruzamos na esquina, ele e o bando armado
Nem parecíamos amigos, cada um pro seu lado
Semana seguinte, notícia chegou como soco
Corpo estirado na vala, é fim de jogo
A mãe chorou sem direito a despedida
Porque aqui até o luto tem área permitida

Zé da esquina também ninguém mais viu
Falam que se envolveu e o destino decidiu
Muitos queriam estudar, mas o caminho é minado
Na ida pra escola vira alvo, por não ser afiliado
Já perdi dois parceiros no pouco tempo que vivi
Um entrou pro bonde, o outro só tava ali
No fogo cruzado, ninguém se salvou
Um erro de cálculo e o CPF cancelou

Não quero atuar em filme de herói e vilão
Uma história real, baseada na exceção
Minha cara não vai pro asfalto nem vira lenda
Sem nome no noticiário aparecendo na legenda
Não quero glória do crime, nem fama que ele traz
Só quero meu filho crescendo na móh santa paz
Figurante que sobrevive ou morre, voz que ninguém escuta
Sou a alma invisível no centro da disputa

Repórter sobe o morro, quer vídeo que choca
A cara do bandido, os tiros que pipoca
O sociólogo escreve tese, tenta achar razão
Mas ninguém questiona político da omissão
Rico não quer saber como cria filho no inferno
Conciliar o medo com o amor paterno
Gostam de ver Cidade de Deus e aplaudir como fábula
Esquecem que atrás das câmeras, tem gente presa numa jaula

A noite cai
A luz do poste pisca, pisca
Como estrela-cadente
Os disparos novamente
O céu risca, risca


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